Os vizinhos de cima, e o seu umbigo…

Esta noite tive algumas dificuldades em adormecer.

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1 de Dezembro de 2018

Infelizmente os vizinhos do andar acima do meu têm horários claramente diferentes dos da maioria das pessoas, e isto leva a que ocasionalmente tenham a tv demasiado algo, ou estejam a ouvir música a horas que a maior parte das pessoas considera impróprias para tal. E naturalmente, o fraco isolamento acústico do prédio não ajuda.

Ainda assim, é de certa forma estranho que não tenham consciência das consequências de ter a tv ou a aparelhagem com um volume demasiado alto. Ou então até terão a dita consciência, mas não lhe darão grande valor.

Isto fez-me pensar numa situação a que tenho assistido recentemente, em várias empresas, de áreas distintas: muitos trabalhadores optam por procurar novas oportunidades fora da empresa em que estão, com a justificação de que “os que estão lá em cima (os gestores) não fazem ideia do volume de trabalho a que estamos sujeitos!”. Não é raro ouvir pessoas que se demitem com justificações como “não querem saber”, ou “dão-nos trabalho sem saberem se conseguimos fazê-lo!”.

Eu sou o primeiro a reconhecer que a micro-gestão é altamente negativa. Não é suposto um gestor saber quantos panos de limpeza se utilizam por mês… mas ao mesmo tempo, ele não se deve alhear do que se passa na produção, e das pessoas que a compõem!

A recente “moda” do Lean Kaizen trouxe para o terreno a ferramenta do Gemba Walk (em que “Gemba” vem do japonês “Genbutsu”, que significa “o lugar real”, ou seja: a produção), que consiste numa caminhada percorrendo as áreas da empresa, analisando os indicadores dos quadros das equipas. Isto ocorre, em grande parte das empresas, uma vez por mês (a frequência não é obrigatória), e para além da análise dos indicadores, representa também uma oportunidade para os gestores comunicarem directamente com quem está no terreno, os operadores, os chefes de linha, os supervisores, os técnicos. No meu entender, esta “volta pela produção” deve ocorrer sempre que possível, não numa lógica de análise de indicadores, mas de ver como estão a correr as coisas, cumprimentar as pessoas, ouvir uma ou outra, e se houver essa possibilidade, torná-la num hábito diário.

Isto permite aproximar a gestão dos operadores, e se os primeiros manobram a estratégia da empresa, os segundos produzem com as próprias mãos aquilo que a empresa vai vender aos seus clientes, logo são interdependentes. Já pude assistir de forma muito clara a exemplos que demonstram como esta aproximação dá mais confiança aos operadores no papel da gestão, pois assim pressentem que esta é acessível. E por outro lado, proporciona também aos gestores uma maior facilidade na compreensão das necessidades dos diferentes níveis da organização. E isto, não raras vezes, é o suficiente para detectar e combater uma falta de motivação do colaborador A, ou uma incompatibilidade entre o colaborador B e o C.

Mas há muitos locais em que isto não é assim. O gestor preocupa-se com aspectos gerais, com a estratégia e/ou as vendas, delegando tudo para quem está abaixo de si na hierarquia da empresa. E os que estão abaixo poderão, por sua vez, delegar em chefes de linha, técnicos, etc. E isso não é necessariamente errado, principalmente em empresas de grande dimensão. Mas se algo nesta engrenagem falhar, as “peças” vão sentir-se não só desapoiadas mas também desanimadas, e muitas vezes os efeitos disso só se sentem quando a engrenagem já está com problemas sérios.

E entretanto… alguém menciona que a empresa é boa porque tem certificação de qualidade, o que para muitos significa que “faz as coisas bem feitas”. Para o operador da linha, isso pode soar a hipocrisia, aumentando ainda mais o seu desânimo e a descrença no papel da gestão.

A versão actual da norma de Gestão de Sistemas Qualidade, a ISO9001:2015, tornou o requisito de definição das “partes interessadas” em algo mais abrangente do que já existia. Agora não basta apenas responder aos accionistas ou donos da empresa, sendo necessário também olhar não apenas para a envolvente da organização, mas também para quem a compõe, no seu interior. E isso inclui os operadores. A empresa deve demonstrar que acompanha a motivação dos seus trabalhadores, seja com inquéritos (anónimos ou não), entrevistas espontâneas, ideias de melhoria ou qualquer outro tipo de indicador, reagindo quando (ou se) surgem situações claras de descontentamento. A intenção da norma é que a gestão se mostre mais próxima do que ocorre no interior da empresa, com um nível mais elevado não apenas de conhecimento, mas essencialmente de comprometimento.

Para as empresas em que isto já ocorre naturalmente, trata-se apenas de demonstrar algo que já existe. Para as outras, trata-se olhar para o seu próprio umbigo e perceber se a Qualidade é algo que realmente se sente no “vestir da camisola”, ou que apenas serve para ter a bandeira da certificação à porta. E perceber que talvez seja necessário baixarmos o som da TV para escutar quem está abaixo de nós.

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