Registos do Alentejo

Desde que me conheço que me lembro de ir para o Algarve nas férias de verão.

André Pinheiro
31 de Dezembro de 2019

Na altura, no início dos anos 80, a auto-estrada A2 ainda não existia, pelo que a via mais rápida para chegar à vila de Altura que os meus pais elegiam como destino todos os anos, era pelas estradas nacionais e atravessando o tórrido Alentejo que, se bem me lembro, era cruzado pela EN106. Uma das recordações mais fortes dessas viagens, tirando os enjoos, era a passagem pela ponte de Alcácer do Sal.

Para reduzir o aborrecimento das viagens, e à medida que ia crescendo e apercebendo-me melhor do percurso, eu criava pontos de referência, como se fossem metas intermédias numa corrida de ciclismo. Ou “gates” de um projeto, se quisermos. E aquela ponte característica marcava um ponto já a mais de metade do caminho. Apesar de não haver auto-estrada, tinha a ideia que a partir dali a estrada era mais recta, mais fácil, e por isso parecia até mais rápida.

Se a viagem tivesse começado de manhã, seria por ali que parávamos para almoçar, algures entre Alcácer e Grândola. Desde cedo que me recordo de ouvir os meus pais comentar, sobre os restaurantes de beira de estrada “este não, que não tem ninguém, não deve ser grande coisa”. Os restaurantes de Mimosa estavam sempre cheios de carros.

Entretanto veio “o progresso”, e completou-se a auto-estrada A2.

Deixei de passar pelos restaurantes da Mimosa ou por Alcácer do Sal.

Deixei de ver a ponte e deixamos de fazer percursos de 2 dias, porque se saíssemos do Porto já tarde, tornava-se uma viagem desconfortável para fazer de uma assentada. Parávamos a meio, o que permitia conhecer um pouco da zona do Alentejo ou Ribatejo. Foi assim, por exemplo, que fiquei a conhecer o lugar mágico que é o Castelo de Almorol, no Tejo.

Grândola passou a ser apenas uma referência a uma revolução, ocorrida quando eu nem era nascido.

Hoje é fácil termos registos de todos os locais por onde passamos. Todos temos telemóveis capazes de tirar fotos fantásticas e que registam tudo que fazemos. O sr. Google diz-me todos os meses quais os locais onde passei mais tempo, quais os percursos que fiz. Temos registos automáticos, e na maior parte das vezes sem sequer darmos por isso.

Na altura não era assim. Não havia telemóveis, e uma fotografia ia gastar rolo, pelo que não se podiam tirar 20 ou 30 e esperar que uma delas ficasse razoável e pouco tremida. Este tipo de registos tinha que ser utilizado de forma muito racional. De resto, sobrava o que ficava guardado na memória, e essa, todos sabemos que tem uma capacidade de armazenamento algo limitada. Hoje, tenho pena de não ter mais registos dos locais onde parávamos para almoçar, das pessoas que conhecíamos. Tenho pena de não ter mais registos das pessoas com quem fazia a viagem, ainda mais porque algumas delas já cá não estão.

Hoje em dia, é fácil criar registos, na vida ou na empresa. A desculpa da papelada em excesso já não é válida, com as ferramentas de informatização e automação disponíveis atualmente. Só não temos registos de transacções, de produções, de resultados de teste, de quem estava, se não quisermos. Mesmo uma startup, pode facilmente ter todos os principais passos que descrevem o seu crescimento registados informaticamente. Seja em diários de bordo, ferramentas de gestão de projeto, registos de vendas, etc. Se fornecemos um serviço, devemos ter registos do que foi acordado com o cliente, prazos e resultados esperados, datas de entrega.

Um exemplo simples: são cada vez mais as empresas, nomeadamente na indústria de produtos alimentares, que obrigam os seus fornecedores a conseguir reunir a informação de uma dada encomenda (quantidades, data e hora dos passos do processo produtivo, matéria prima), num prazo máximo de 2 horas (simulando uma necessidade de recolha). E isto só é possível se tivermos a informação organizada e os registos atualizados, e de preferência de forma automática e “online”. A indústria 4.0 veio ajudar a automatizar este tipo de registos, mas antes de informatizar o que quer que seja, convém saber o que queremos registar, quando e quem os faz.

Tal como nas minhas viagens pelo Alentejo até chegar ao Algarve, muitas vezes só nos damos conta da importância de registar as coisas quando percebemos a falta que elas nos fazem.

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