Prioridade das prioridades, a contenção da crise sanitária e a preservação
do máximo de vidas possível foram conscienciosamente as linhas de atuação para
as medidas tomadas pela grande maioria dos governos internacionais. Colocou-se
assim, e corretamente, para uma segunda linha as preocupações o impacto
económico-financeiro das medidas impostas para a limitação da progressão da
pandemia. Essas medidas parecem agora estar a surtir em Portugal, assim como
nos países mais precocemente atingidos pela crise, os efeitos esperados de
estancamento da progressão exponencial do número de infetados e do número de
óbitos. Vislumbra-se assim que não deverá, ausente um possível efeito de
recaída, estar muito distante o momento em que as atenções possam finalmente
começar a concentrar-se nos efeitos económicos e financeiros desta crise de
saúde pública.
E que poderemos esperar então para o futuro próximo (e mais distante)?
Naturalmente que uma resposta a esta questão guarda em si um elevado nível de
incerteza pois a evolução da crise tem sido muito pouco linear, com avanços e
recuos nas decisões políticas, com variáveis ainda não totalmente dominadas
(timing de desenvolvimento de vacinas, percentagens reais de imunizados e
infectados, volume de fundos de emergència que será disponibilizado, etc,) mas
há pelo menos alguns cenários que caberá discutir e algumas certezas relativas que
talvez possam já ser assumidas.
Um primeiro aspeto é que a luta contra os efeitos económicos adversos desta
crise sanitária vai envolver valores sem qualquer precedente anterior, mesmo
quando considerados as medidas tomadas aquando das recentes crises financeiras
(2007/08) e soberanas (2010/12). As injeções maciças de fundos públicos que
ocorrerão para procurar salvar em alguns casos a totalidade de alguns sectores
(como por exemplo o transporte aéreo) terão de ser financiadas por enormes
emissões de dívida pública e será inevitável que o equilíbrio orçamental de
muitos Estados seja drasticamente afetado. No curto prazo, é provável que
muitas empresas consigam com essas ajudas estatais ultrapassar, ainda que com
dificuldade, os problemas de liquidez resultantes da redução (em alguns casos
de anulação) temporária de receitas, mas não serão certamente todas.
Assim, poderemos contar com duas certezas relativas a curto prazo: por um
lado, (a) uma quebra económica geral (com um
aumento do nível de desemprego, um numero significativo de falências e a
existência de um numero crescente de empresas com dificuldades de rentabilidade
e com sobre-endividamento) e por outro, (b) um aumento do nível de
endividamento público, este ultimo com consequências diversas consoante o
estado à partida das finanças públicas de cada país. Mas tanto (a) como (b)
terão igualmente outras consequências a um prazo mais longo, como será referido
adiante.
Um paralelo pertinente que se poderá fazer consiste no tratamento urgente
de um paciente com um certo tipo de medicamentos. Como é sabido, muitos
medicamentos podem ter contra-indicações e se bem que possam resolver o
problema mais imediato (por exemplo cuidar de um problema cardíaco urgente) irão
causar, todavia, outros desequilíbrios que poderão acarretar problemas mais
tarde (por exemplo ao nível do fígado). No caso da crise atual, não podemos
deixar de pensar nas consequências a mais longo prazo das medidas em vias de
ser tomadas para providenciar liquidez e condições de sobrevivência a muitas
empresas e trabalhadores. Notar aliás, que o sentimento em muitas empresas
(sobretudo as que deixaram de ter quaisquer receitas) é que o recurso a novo
endividamento acarretará a prazo dificuldades em fazer face ao serviço da
dívida pelo que muitas
Empresas poderão no final sentir-se pouco encorajadas a tirar partido da
disponibulizaçáo de empréstimos, ainda que com garantia direta ou indireta por
parte de sistemas de garantia mútua com conforto Estatal. E sobretudo se, como
tudo indica, forem solicitadas na mesma garantias pessoais e se as taxas de
juro não forem suficientemente baixas.
Um primeiro efeito será as consequências do desequilíbrio das contas
públicas. Para países com baixos níveis de Divida Publica em relação ao PIB,
como a Alemanha (62%), Holanda (52%), Republica Checa (33%) ou Luxemburgo (21%), lidar com a crise será
relativamente fácil pois que um aumento, ainda que significativo desses rácios
por força do aumento esperado da dívida pública (e da redução do PIB) deverá
ainda assim manter esses valore bem abaixo da média da União Europeia (82%) e
deste modo não acarretar perdas de confiança por parte dos financiadores ou
mesmo ao nível das taxas de juro a exigir por estes. Mas o cenário poderá ser
bem diferente para os países com valores à partida mais elevados como é o caso
da Grécia (181%), Itália (135%), Portugal (118%) ou talvez mesmo, noutra parte
do Mundo, os Estados Unidos (107%). Na ausência (provável) de acordo para uma mutualização
da emissão de divida por parte da União Europeia, existe o espectro real de que
poderão começar a desenhar-se potenciais novas crises soberanas, razão
suficiente para a pressão dos países sobre-endividados do sul da Europa para a
emissão conjunta das chamadas coronabonds. No caso especial de Portugal,
relembre-se que o abaixamento do peso da dívida nos anos mais recentes (chegou
a ser 133% em 2014) deveu-se sobretudo ao crescimento mais rápido do PIB já que
o valor absoluto da dívida pública nunca deixou de aumentar nos últimos nos (ao
ritmo de 8 milhões de euros por dia nos doze meses terminados em Fevereiro).
Deste modo, a combinação de uma quebra no PIB com um rápido aumento esperado da
emissão de dívida publica irá projetar provavelmente para valores recorde o
rácio nacional de Divida Publica/PIB. Se isso for acompanhado por um
agravamento das taxas de juro, esse desequilíbrio poderá ser ainda mais
notório. Resta saber se as políticas dos Bancos Centrais internacionais de
manutenção de taxas de juro baixas poderão na prática manter-se num cenário em
que haverá um aumento maciço de recurso a emissões de dívida por parte da
generalidade dos Estados, que necessitarão de encontrar suficientes fundos de investidores
disponíveis para os financiar, o que poderá eventualmente exigir, em condições
normais de mercado, um aumento das taxas de juro a praticar. Se assim fôr, as
consequências para as já fragilizadas Finanças públicas nacionais serão ainda
mais gravosas e, como bem referiu o Prof. Daniel Bessa, alguém deverá ser
chamado a pagar a fatura (quando Portugal já é um dos países do mundo com maior
carga fiscal).
Uma segunda consequência a prazo será, a nível financeiro, os efeitos sobre
o sistema bancário. No caso português, existirá um mais que provável aumento a
curto e médio prazo dos empréstimos em incumprimento (os chamados “NPL-Non Performing Loans”). Muito provavelmente nem todos os bancos nacionais, (já a
braços com muitas áreas de negócio ameaçadas e disputadas por um número
crescente de fintechs) terão as
condições necessárias para manter os rácios de capital e liquidez que irão ser
afetados pelo aumento das provisões sobre crédito mal parado causados por uma
retração económica assim como por uma quebra potencial de confiança por parte
de investidores na sua dívida senão mesmo também por depositantes. Não será
preciso um grande esforço de imaginação para perceber o grave risco que isso
poderá trazer para um Estado com uma capacidade de intervenção já muito
debilitada com as outras frentes de guerra desta crise e a quem poderá ser
pedida mais uma intervenção estatal de socorro bancário (não é crível que o
restante debilitado sistema financeiro o possa fazer ao abrigo de Fundos de
Resolução).
A um nível económico e mais micro, certos sectores terão um desempenho
menos desfavorável do que outros mas haverá a perspetiva de em diversas áreas
económicas os efeitos poderem assumir a forma de alterações mais estruturais e
não simplesmente temporárias. Assim, se por um lado é perfeitamente possível
que os sectores de turismo, restauração e mesmo talvez imobiliária venham a
prazo recuperar (ainda que não a curto prazo) já para os sectores associados à
mobilidade geral das pessoas (transporte aéreo, rodoviário, ferroviário,
combustíveis), o mesmo poderá não suceder a prazo. Estas atividades na verdade poderão
acusar uma retração com efeitos duradouros à medida que, ajudado por uma
proliferação e melhoria das tecnologias de comunicação inter-pessoal existentes,
os hábitos gerais da população passem a incluir com muito mais intensidade do
que antes o trabalho e as reuniões à distância. Desde logo, é bastante provável
que no ensino superior se venha a assistir a dificuldades acrescidas no
recrutamento de alunos para soluções de formação presencial. De facto, é
bastante plausível que, com uma maior familiaridade e recetividade a soluções
de ensino remoto por parte de potenciais alunos, haja cada vez mais
oportunidades de frequência de cursos à distância ministrados por escolas
internacionais reputadas com tecnologias cada vez mais sofisticadas e
apelativas e com custos potencialmente bastante mais reduzidos (e ainda mais
quando consideradas as despesas de deslocação e estadia). Uma implicação pode
ser o encerramento, ou no mínimo o redimensionamento, de instituições de ensino
superior que não consigam vir a adaptar-se às novas formas de ensino a que o
mercado se poderá habituar. Também em termos do sector publico o recurso cada
vez superior a meios eletrónicos de contacto e atendimento à distância para
tarefas administrativas, cuja viabilidade a crise atual mostrou com clareza,
poderá ser um fator que permitirá uma redução significativa do pessoal
necessário em várias áreas mais mão de obra intensivas e administrativas do
sector publico (exceção feita naturalmente ao setor da saúde). E bem a tempo já
que o Estado precisará mesmo de encontrar o máximo de economias de custos para
fazer face aos atuais desafios.
Em suma: o panorama é especialmente desafiante, a ultrapassagem da crise sanitária será seguida por uma potencial crise económica, financeira e de desequilíbrio das contas públicas. A dimensão exata, a facilidade de ultrapassagem e a extensão temporal desses problemas continuam a ser importantes incógnitas. Mas uma coisa será certa, para muitos sectores e agentes económicos, a realidade será muito diferente da vivida até antes do início desta crise. Será preciso muita capacidade de adaptação, criatividade, empreendedorismo e resiliência para que todos nos adaptemos a este novo ambiente.