30 de Abril de 2025


ANDRÉ PINHEIRO

Direção de Qualidade


O Circo de Feras


Há algum tempo fui realizar uma auditoria de qualidade a uma empresa. Coisa relativamente simples, numa empresa pequena, sendo que necessitavam de alguém para concluir a auditoria interna com alguma urgência.



Normalmente, e mesmo com toda a preparação prévia, qualquer auditoria de Qualidade começa por uma conversa com a gestão, para percebermos qual o percurso da empresa, como a gestão de topo define o posicionamento da empresa no mercado, qual a estratégia geral para empresa e os seus objetivos, e como estes se traduzem não apenas nas atividades relacionadas com a Qualidade do produto ou serviço mas nos processos produtivos em geral.

Esta conversa inicial, para além de ajudar a quebrar o gelo dá-nos também uma boa indicação daquilo que vamos encontrar não só a nível de processos mas também das diferentes pessoas que durante o dia nos irão surgir à frente.

Nesta auditoria em particular, o administrador, que claramente ficou surpreso quando o auditor pediu que este viesse à reunião, revelou que, na sua ótica, as auditorias de qualidade são “uma palhaçada” que apenas serve para encher os bolsos de alguns personagens.

A minha vontade, naquele momento, foi de me levantar, responder qualquer coisa do género “não me revejo como palhaço, pelo que vou procurar outro circo” e sair porta fora. Mas não o fiz.

Não o fiz por respeito às outras pessoas que entretanto (enquanto esperava pelo administrador) tinha já conhecido, e que claramente estavam ali para tentar ajudar. E por quem me tinha pedido ajuda para ir realizar a auditoria, não gosto de falhar em compromissos assumidos.

Optei então por tentar aquele “jogo” de dar alguma razão à pessoa, enquanto vamos dando argumentos que de alguma forma desconstroem os seus argumentos, ou em bom português, “dar trela”. É verdade que as auditorias são obrigatórias para a obtenção de um certificado de qualidade, mas se este é exigido pelos clientes, é porque vêm nele uma indicação se a empresa está bem ou mal preparada para enfrentar os desafios. Se há empresas que fazem tudo bem nos dias anteriores a uma auditoria, e tudo mal no resto do ano, também é verdade, mas isto não é muito difícil de “apanhar” numa auditoria.

No caso desta auditoria, e já durante uma primeira visita aos processos, ao questionar por reclamações de clientes responderam-me que “não há”, o que ao estilo de um reflexo de Pavlov faz disparar todos os alarmes de qualquer auditor.

Como nesta altura já estava acompanhado apenas pelas pessoas da produção e qualidade, e ainda por cima o responsável de qualidade era alguém com pouquíssima experiência no cargo, optei pela atitude mais pedagógica, e em tom de brincadeira questionei se saía sempre tudo bem à primeira. Lá me foram explicando que cada produto era feito por encomenda, à medida do que o cliente tinha pedido, e que por isso o produto final não podia ter reclamações porque era sempre exatamente o que o cliente tinha encomendado. Questionei então se os clientes nunca mudavam de opinião a meio do processo, se não havia “já agoras” que levassem a alteração de funções e características do produto, alterações ao conceito inicial, mesmo após a entrega do produto. “Ah sim, isso há, claro, faz parte”.

“Ok, então vamos lá ver como reagem a essas alterações…”. E a auditoria decorreu normalmente a




partir daí, sempre com uma ou outra resposta das pessoas de que “isso é por indicação do administrador”.

Feliz ou infelizmente, o tecido empresarial português ainda está repleto de pequenas empresas criadas por alguém que um dia teve uma ideia, um rasgo para aproveitar uma lacuna do mercado, uma visão para ganhar clientes e fazer crescer um negócio, mas que acham que só eles é que sabem, e que quem está de fora não percebe nada do assunto e que só quer meter dinheiro ao bolso. Não é difícil passar de uma liderança empreendedora a uma liderança tóxica, e que leva a que as pessoas comecem a procurar outros desafios. Não é difícil alguém que fez crescer uma ideia do nada até um negócio de milhões pensar que o ambiente na empresa é muito bom porque solta uns “bitaites” e toda a gente se ri, sem perceber que as pessoas se riem

porque não sabem o que acontece se não o fizerem.

Felizmente também conheço exemplos do contrário, de gestores que fizeram crescer uma empresa sem descurar o bem-estar e a motivação dos colaboradores, e que percebem que por muito boas que sejam as nossas ideias, quem as implementa no terreno tem que estar motivado para isso. E é muito normal essa motivação não ter necessariamente a ver com altos salários, mas antes com boas condições de trabalho, ambiente saudável, uma liderança efetiva que dê a confiança aos trabalhadores de saberem qual a direção que a empresa quer ter e qual o seu papel nesse processo. Isso fá-los sentir-se envolvidos e parte integrante da empresa, ajuda a que vistam a camisola.

No circo da vida, pode ser difícil perceber que em vez de sermos

os acrobatas que pensamos ser, ao saltar de obstáculo em obstáculo, ou os mágicos que fazem truques para iludir clientes, ou até os domadores de colaboradores difíceis de ensinar, afinal seremos nós próprios os palhaços de quem as pessoas se riem, mesmo quando não temos piada.


Mas no que a mim me diz respeito, vou continuando na minha, a olhar para a qualidade como uma espécie de filosofia de vida e que pode ser útil se bem aproveitada. Até porque nunca gostei muito de circos!

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