28 de Outubro de 2023





ANTÓNIO NOGUEIRA DA COSTA

CEO da efconsulting |  docente e membro do N2i do IPMaia


O que as empresas familiares fizeram à Indústria do Calçado?


Se no século XX o setor do calçado era associado a negócios tradicionais e pouco apelativos, o século XXI veio revelar a transformação das suas empresas em focos de enorme atratividade.



O que permitiu tal (re)evolução? A capacidade de associação e de inovação das empresas familiares que dominam as principais atividades desta indústria.

Em 1994, Mira Amaral, Ministro da Indústria do governo de Cavaco Silva, encomendou um estudo a Michael Porter sobre a competitividade da economia portuguesa. Em síntese, o relatório concluiu que Portugal deveria concentrar a sua energia, inovação e marketing, para se diferenciar em contextos internacionais, com especial foco nos sectores tradicionais como o calçado, o vinho, os têxteis, madeira e papel, entre outros.

Em 2019, 25 anos após este relatório, o ECO procurou um balanço do mesmo junto de Mira Amaral: “A aplicação do projeto Porter permitiu melhorias evidentes nos setores tradicionais como o calçado, têxtil, vestuário e confeções, nos vinhos e no mobiliário. […] E teve um efeito baixo em todos os elementos de cooperação entre as empresas”. 1



Salientou ainda a falta de aposta em verdadeiros clusters tecnológicos, a excessiva atomização do tecido empresarial português e a necessidade de ganhar escala. Focando na indústria do calçado e analisando um conjunto de dados do setor, com referência ao da realização do estudo e dois períodos posteriores, destacam-se os seguintes elementos:

a) de 1994 para 2010, período de 16 anos em que a inflação acumulada foi de cerca de 50%, o setor sofreu de forma arrasadora: 

• Redução do nº empresas (24%), da mão de obra (46%) e do nº de pares produzidos (43%) – um enorme declínio da indústria; 

• Decréscimo do volume de negócios em 20% e aumento do preço médio do par de sapatos em 41% (abaixo do valor da inflação); 

b) de 2010 para 2022, período de 12 anos com uma inflação acumulada de cerca de 31%, o setor rejuvenesceu: 

• Redução do nº empresas (5%), acréscimo insignificante do emprego (0,5%) e um incremento do nº de pares de sapatos (29%) – aumento de produtividade; 

• Incremento do volume de negócios em 77% e do preço médio do par de sapatos em 37% (acima do valor da inflação) - incremento no valor acrescentado.






Os dados refletem uma inversão da deterioração dos negócios para um posicionamento de significativa evolução da competitividade internacional e valor acrescentado - a grande maioria da produção é para exportação: mais de 90% em 2022, num valor na ordem dos dois mil milhões de euros).

Esta análise permite uma perspetiva distinta da apresentada por Mira Amaral. Se, por um lado, o cluster é caracterizado por empresas de reduzida dimensão: 

• cerca 50% - microempresas (menos de 10 trabalhadores), 

• 27% - pequenas empresas (10 a 49 trabalhadores), 

• 8% - médias empresas (50-249 trabalhadores), 

• Menos de 10% (10 empresas) – grandes empresas que empregam 250 trabalhadores ou mais (INE dados de 2016);

Por outro, pode-se considerar esta capilaridade como um fator gerador de grande agilidade e competitividade. As grandes e médias empresas possuem uma capacidade de satisfazer os seus clientes em pequenas quantidades (quando vistas a nível internacional) e com produtos mais elaborados porque, para além da sua própria produção, podem e recor­rem à subcontratação no setor. Esta agilidade é proporcio­nada exatamente pela estrutura do setor incluir muitas microempresas as quais, por sua vez, possuem uma enorme agilidade na adaptação às necessidades – essencialmente de mão de obra intensiva e tempos curtos de produção.


Em suma, o surgimento de umas quantas empresas com escala é desejável e possível porque estas se suportam numa estrutura piramidal que inclui outras de média dimensão e muitas microempresas na sua base.

Esta particularidade reflete uma significativa cooperação dos membros da indústria, a qual surge também refletida na enorme evolução da principal associação do setor - APPICAPS (Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos).

Fundada em 1975, com sede no Porto e de âmbito nacional, representa as principais atividades industriais do setor, com relevância para o calçado e suas componentes, e tem tido um papel crucial na transformação e (r)evolução do setor, de que são exemplo: 

• A fundação, em 1986, do Centro Tecnológico do Calçado de Portugal (CTCP); 

• O desenvolvimento e implementação de planos estratégicos, sendo que o último (Plano Estratégico 2030 Cluster do Calçado) destaca a sua visão: “Ser a referência internacional da indústria de calçado e reforçar as exportações portuguesas, aliando virtuosamente a sofisticação e criatividade com a eficiência produtiva, assente no desenvolvimento tecnológico e na gestão da cadeia internacional de valor, assim garantindo futuro de uma base produtiva nacional, sustentável e altamente competitiva.



Nesta mesma linha evolutiva e a pensar no longo prazo, o setor desenvolveu um cluster que junta 45 parceiros - 14 empresas de calçado e marroquinaria, 9 empresas de componentes, 15 empresas de base tecnológica e 6 entidades de interface científico e tecnológico - num projeto coordenado pelo Centro Tecnológico do Calçado de Portugal (CTCP), e está a desenvolver a fábrica inteligente do futuro. 

O projeto FAIST — Fábrica Ágil, Inteligente, Sustentável e Tecnológica — envolve um investimento de €50 milhões, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), e “tem como principal objetivo dotar e potenciar esta indústria com tecnologias inovadoras, … para ser a mais moderna do mundo em processos e materiais sustentáveis, aumentando a capacidade de resposta às exigências do mercado e continuando a tornar a indústria portuguesa de calçado e marroquinaria a mais moderna do mundo”, Florbela Silva, coordenadora do projeto.

Acresce que este setor possui uma outra expressiva singularidade: a grande maioria das sociedades que o compõem são empresas familiares. Sim, aquelas que são fundadas por pessoas empreendedoras - muitas vezes com menos qualificações académicas, mas contrabalançadas com enorme experiência, capacidade de aprendizagem e de criatividade para  


encontrar soluções - que “arrastam” as suas famílias para o desenvolvi­men­to  dos negócios e possuem uma capacidade de resiliência ímpar.

Esta última capacidade evidenciou-se no período tempestivo, de quase três décadas, da indústria do calçado e vai continuar a imperar no desafio que enfrentam todos as famílias empresárias®: manter a união para 

assegurar a continuidade geracional dos negócios em mãos da família.

A indústria, ilustrada por três empresas familiares abaixo, ao conjugar as competências de associação e cooperação, com uma visão de longo prazo e com empresários suportados em robustas empresas familiares, reflete um promissor futuro para o setor do calçado.






RODIRO

Com origens em 1992, a RODIRO é uma empresa familiar, inserida no mercado de tradição de calçado de Felgueiras, produzindo para homem e senhora. Optando por não se focar no desenvolvimento de marca própria, nos mais de 16.400 m2 quadrados e com uma equipa superior a 450 trabalhadores, produz diariamente oito mil pares de sapatos para marcas de prestígio internacional, localizadas nos cinco continentes, sendo o seu volume de negócios superior a €46 milhões de euros.



ATLANTA

Fundada em 1995, com apenas 2 máquinas e 5 funcionários, a Atlanta – Componentes para Calçado, Lda possuía uma capacidade de produção de 500 a 700 pares de solas monocolor.

Especialistas no desenvolvimento e produção de solas para a indústria do calçado, desde cedo se destacou pela ousadia, originalidade e design das suas coleções próprias, pela vasta gama de modelos de solados, pela sua complexidade técnica e qualidade.

Atualmente, a Atlanta dispõe de instalações próprias com uma área coberta de cerca de 8.000 m2 e uma capacidade de produção de 20.000 pares de solas/dia, monocolores, bicolores ou tricolores, em materiais reciclados TPU, TR (com certificação GRS Global Recycled Standard) SBR, TR, pré-fabricados e EVA. No campo da inovação e da sustentabilidade, a 





 empresa tem uma parceria com a Universidade do Minho, com quem faz a investigação de novos materiais e

 fórmulas de fabrico. Em 2021 e com quase 90 empregados, a empresa faturou cerca de €8 milhões. 








AMF Shoes

Nascida em 1999, A AMF Shoes começou em regime de outsourcing para fábricas da região, oferecendo soluções de segurança inovadoras, atrativas e funcionais

Em 2005 nasce a 2W4 (To Work For) que deu origem à marca TOWORKFOR que se assume pela conceção e produção de calçado de segurança 


ergonómico, com design arrojado, inovador e altamente tecnológico.

A marca própria e os projetos de Private Label para grandes marcas europeias, posicionam a AMF como uma empresa de referência na produção de calçado de segurança para todo o mundo, tendo com os seus 144 empregados faturado mais de €17 milhões em 2021.

Em suma, o surgimento de umas quantas empresas com escala é desejável e possível porque estas se suportam numa estrutura piramidal que inclui outras de média dimensão e muitas microempresas na sua base.

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